É uma pena mesmo ver que o maior e melhor museu da América Latina está nesse estado.
Um museu aos pedaços
Devassa nas contas do Masp flagra uma das
maiores instituições culturais do país em
situação de "falência administrativa e financeira"
Numa reunião a portas fechadas, realizada na quarta-feira passada, a promotora Mariza Tucunduva, do Ministério Público paulista, apresentou o resultado de uma investigação de seis meses sobre o Museu de Arte de São Paulo (Masp). Que as coisas não vão bem na instituição é algo que já havia ficado patente em episódios como um corte de luz por falta de pagamento, em 2006, e o furto de duas pinturas do acervo, no fim do ano passado (obras felizmente recuperadas pela polícia pouco depois). Mas só agora, com a abertura da caixa-preta de sua administração, pode-se ter uma noção exata do tamanho da calamidade. VEJA teve acesso aos documentos. O Ministério Público empreendeu uma análise minuciosa das finanças e práticas de gestão do Masp, que se estendeu dos balanços contábeis ao funcionamento de sua lojinha de suvenires. A conclusão é que o museu está hoje em estado de "falência administrativo-financeira". O relatório adverte: "O Masp encontra-se no limiar da descontinuidade de suas atividades, com graves problemas financeiros, de controle e, por conseqüência, de gestão". A investigação, frise-se, não levanta indícios de má-fé ou falcatruas no museu, presidido há catorze anos pelo arquiteto Julio Neves. Mas oferece fartas evidências de que a gestão não está à altura de uma instituição do porte do Masp, dono da coleção de arte mais importante de todo o Hemisfério Sul.
O relatório do Ministério Público mostra que a partir de 1997 – três anos depois de Neves assumir a direção – o Masp mergulhou numa espiral de dívidas. Os débitos já batem na casa dos 20,7 milhões de reais e devem chegar a 32 milhões de reais em 2010 se não houver uma correção de rota drástica. Foram detectados problemas nas prestações de contas. Em seu balanço de 2007, o Masp contabilizou recursos que se destinavam a projetos específicos como se fossem receitas de uso corrente. Com isso, operou-se o milagre da transformação de um rombo de 750 000 reais num pequeno superávit. "O museu incorreu em práticas contábeis condenáveis", acusa o Ministério Público. A investigação apontou ainda um quadro assustador no que se refere ao controle do acervo. Desde 1981, as doações de obras de arte não são anotadas em livros contábeis, ao contrário do que ocorre nos grandes museus mundiais. A entrada ou saída de peças para reparação ou empréstimo é registrada a mão em fichas de papel. Os gastos com restauro de arte são ridículos: 70 reais por mês, para um acervo composto de 7 675 peças. "Há evidências de total descontrole patrimonial – o que pode a curtíssimo prazo comprometer o acervo", diz o Ministério Público.
Está-se diante, em suma, de uma obra-prima de amadorismo. O detalhe espantoso é que a direção do Masp não estava nem um pouco desinformada sobre esse estado de coisas. O diagnóstico do Ministério Público amparou-se, em boa parte, num estudo da consultoria Deloitte, de 2006, e em duas auditorias da empresa PriceWaterhouseCoopers, desse mesmo ano e de 2007, todos encomendados pelo próprio museu e nunca divulgados. Um ano antes do furto das obras de Picasso e Portinari, a Deloitte já esmiuçava não só as tragédias financeiras e organizacionais do Masp como apontava para a debilidade de seu sistema de segurança – evidenciada pela carência de guardas no período noturno e pela falta de sensores de proteção como os existentes nos maiores museus no mundo. Os gestores simplesmente ignoraram os alertas.
O Masp é uma associação privada sem fins lucrativos, com um número reduzido de sócios (hoje são cerca de setenta). O poder, na verdade, é ainda mais concentrado. Está nas mãos de um presidente forte, amparado por um conselho deliberativo. Aos 75 anos e em seu sétimo mandato, Neves detém o controle absoluto dessa estrutura. Aos poucos, seu grupo alijou toda e qualquer oposição – últimas vozes que se levantaram contra sua gestão, o embaixador Rubens Barbosa e o economista Andrea Calabi se retiraram há dois anos. Em meio à balbúrdia causada pelo furto do fim de 2007, um dos conselheiros, o publicitário Nizan Guanaes, chegou a sinalizar que se apresentaria como candidato alternativo à presidência do museu nas próximas eleições, entre outubro e novembro. Mas logo baixou o tom. É inegável que Julio Neves trouxe conquistas para o Masp. Nos primeiros tempos de sua gestão, desdobrou-se para conseguir recursos para uma série de reformas inadiáveis, além da construção de uma reserva técnica climatizada que não fica a dever à dos museus do Primeiro Mundo. Mas isso é apenas uma fração do que precisaria ser feito.
Criado pelo empresário Assis Chateaubriand, no fim dos anos 40, o Masp se viabilizou graças às doações e à dedicação da elite brasileira. Naquele momento, a idéia de um grupo restrito de sócios deu frutos e foi funcional. Como apurou o MP, Julio Neves tem feito empréstimos pessoais ao Masp sem a obrigatória documentação formal, mas isso é um arremedo do antigo mecenato. Ações desse tipo já não respondem às necessidades de um museu moderno, que (como observa a Deloitte) precisa de quadros especializados e de práticas de administração afeitas aos princípios da chamada "governança corporativa". "A fórmula institucional arcaica isola o Masp das forças da sociedade brasileira que seriam capazes de lhe infundir energia", diz Luiz Marques, curador-chefe do museu entre 1995 e 1997. Vêm hoje de todos os lados esforços para romper com uma estrutura que Ronaldo Bianchi, secretário adjunto de cultura do estado de São Paulo, qualifica de "medieval".
Na reunião da quarta-feira, Julio Neves se negou a aceitar os termos de um acordo apresentado pelo Ministério Público. Pela proposta, uma assembléia seria convocada para debater mudanças de estatuto que tornassem possível a entrada de novos membros no conselho do Masp – a prefeitura paulistana, o governo do estado e o governo federal reivindicam um assento como precondição para investir recursos na instituição. A direção do museu pediu trinta dias para analisar a questão, o que não foi aceito pelo Ministério Público. Não é o primeiro revés nas tentativas de equacionar os problemas do Masp. Recentemente, também houve conversas com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que se propôs a reunir um grupo de empresas dispostas a pagar as contas do museu. A contrapartida seria a mesma – participação no conselho. Mais uma vez, as negociações não avançaram.
Como não houve acordo na semana passada, o Ministério Público deverá propor uma ação contra o Masp. E outro tumulto se avizinha no horizonte: em novembro, depois de quarenta anos, vencerá o período de cessão do prédio projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi na Avenida Paulista. A prefeitura paulistana é dona do edifício – e deverá pressionar a diretoria do museu antes de renovar o contrato. É melancólico que uma instituição que nasceu da iniciativa privada esteja quase sem saída para prover suas necessidades mais primárias e prestes a sofrer a intervenção do poder público. Mas que assim seja, se a alternativa for deixar à míngua o seu acervo extraordinário.
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