Manifesto Quartomundista 2.0
O Quarto Mundo está prestes a completar dois anos de atividade e várias coisas mudaram nesse tempo, tanto no mercado de quadrinhos brasileiros quanto no nosso próprio coletivo. Por isso, convém fazer uma releitura do Manifesto Quartomundista, que apesar de não ser um manifesto no sentido exato do termo, foi escrito com intuito de mostrar qual era a situação do mercado de quadrinhos em 2007 e o porquê da criação do nosso coletivo, assim como a que se propõe.
No entanto, o que não mudou é que ainda hoje é difícil definir o Quarto Mundo numa única palavra, sendo mais fácil defini-lo pelo o que ele não é: o Quarto Mundo não é uma editora, não é uma cooperativa, não é um selo de quadrinhos e não é uma distribuidora, ainda que exerça ações e que tenha características de cada um deles.
O objetivo principal do Quarto Mundo é viabilizar a existência de um mercado de quadrinhos independente-alternativo que sirva de base de sustentação para o mercado principal-mainstream das editoras. Se isso ocorre, esse mercado pode ser (re)alimentado com inovações técnicas e artísticas (que acontecem com maior intensidade no ambiente de experimentações das publicações independentes) e, principalmente, com novos quadrinistas que darão prosseguimento a produção. Dessa forma, o mercado dos quadrinhos se torna forte e contínuo, e não vive de ondas temporárias que se quebram, como até então acontecia.
Para cumprir esse objetivo, o Quarto Mundo está apoiado em um tripé tanto teórico, quanto prático.
O primeiro deles refere-se ao próprio funcionamento do mercado cultural hoje em dia que está apoiado na teoria econômica da Cauda Longa. O termo Cauda Longa foi criado em 2004 por Chris Anderson, editor-chefe da revista Wired, e se popularizou através de um livro que ele escreveu intitulado The Long Tail. Em seu livro, Anderson analisa as alterações no mercado econômico, sobretudo na indústria cultural, em que ocorre um fenômeno de migração da cultura de massa para a cultura de nichos devido a convergência digital e da Internet, o que implica em um novo padrão de comportamento por parte dos consumidores.
O primeiro ramo da indústria cultural a sentir o impacto da Cauda Longa foi o da música, mas que já afeta, em maior ou menor grau, outros segmentos como os quadrinhos. Dentro do cenário dessa nova economia, fenômenos de venda como os X-Men do Jim Lee ou a Chiclete com Banana (para citarmos um exemplo nacional) serão bem mais raros. Cada vez mais deixaremos de ter esses grandes “hits” de vendas, assim como teremos uma queda nas tiragens ao mesmo tempo em que haverá um crescimento no número de títulos.
Dentro da Cauda Longa, o custo de manutenção de um produto muito procurado é igual ao custo de manutenção de um produto procurado apenas por um número mínimo de consumidores, então nichos que antes eram ignorados pelas grandes editoras passam agora a ter grande valor econômico para as pequenas editoras e os autores independentes.
Então o que mais interessa para o Quarto Mundo na Cauda Longa é que em um mercado de nicho, o que importa não é a quantidade, mas sim a variedade. Ou seja, mais vale termos 100 revistas com tiragem de mil exemplares do que uma única revista com tiragem de 100 mil. Tendo uma ampla variedade de títulos, nos mais diversos estilos e gêneros, as chances de um leitor se interessar por pelo menos um deles são bem maiores, pois você consegue atender a todo tipo de gosto.
Como as tiragens de nossas revistas são pequenas não há como ganharmos na economia de escala, mas aplicando o modelo da Cauda Longa podemos potencializar os nossos ganhos com a economia de escopo. E isso é feito sobretudo através do sistema de distribuição do nosso coletivo, como foi mais detalhadamente explicado neste post, e também através das vendas em eventos, feiras, shows, e pela própria Internet.
O segundo pilar no qual o Quarto Mundo está assentado é o que se convencionou chamar de Lei de Sturgeon. Essa lei diz que em uma produção cultural, 90% do que for produzido será medíocre, e apenas 10% será realmente genial. A Lei de Sturgeon, apesar de se tratar de um pensamento hiperbólico, pode ser aplicada a qualquer mercado cultural, o que inclui os quadrinhos. Em geral, o que chega ao Brasil é apenas a nata da produção mundial, então não percebemos a quantidade de títulos insignificantes que todo e qualquer mercado de quadrinhos estrangeiro (norte-americano, o europeu, o japonês, etc) possui. E não é diferente com o mercado de quadrinhos brasileiro.
O problema é que o leitor brasileiro também só percebe a nata da produção mundial, e quando olha para as tentativas de produções brasileiras, querem que essas produções já tenham logo de cara a genialidade que encontram nessas produções mundiais. Mas essas produções só chegaram a esse patamar porque foram forçadas a superar os 90% de seu próprio mercado. É quase que um darwinismo aplicado aos quadrinhos.
Sendo assim, a única forma de termos uma boa quantidade de títulos brasileiros nesses 10% de produção genial é tendo antes uma quantidade maior ainda de títulos nos 90%. Por isso, quanto mais quadrinistas se aventurarem a publicar de forma independente, melhor. Quanto mais quadrinistas publicando tivermos, mais acirrada será a “competição”, elevando o nível de qualidade da nossa produção.
Contudo, não devemos ser ingênuos, pois muitas das revistas publicadas atualmente não conseguirão sobreviver (o que não impede seus editores de tentarem de novo, com outras propostas e abordagem), mas as que sobreviverem, terão um nível de qualidade altíssimo.
No entanto para que isso aconteça é preciso antes de tudo que a revista encontre seu leitor. Muitas revistas em quadrinhos morrem prematuramente porque não conseguem chegar ao mínimo de leitores que poderiam atingir para sobreviverem e não porque são tecnicamente ou artisticamente ruins. Uma das atuações do Quarto Mundo é justamente não permitir que uma revista em quadrinhos independente morra por “infanticídio”. É preciso fazer com que ela encontre o seu público mínimo (o que o Kevin Kelly chama de os 1000 Fãs Verdadeiros) para ter tempo de crescer, amadurecer e assim se tornar competitiva se quiser futuramente atingir o seu potencial máximo de leitores.
De nada adianta, pro exemplo, tentar vender uma revista em quadrinhos de romance para um público de super-heróis, assim como será inútil tentar vender uma revista de super-heróis para um público que curte romance. Uma revista em quadrinhos só ganhará maturidade se tiver o feedback de seu próprio público leitor.
A proposta do Quarto Mundo é ajudar a encontrar os modos e os canais de venda corretos para cada tipo de HQ, onde ela possa descobrir o seu devido público leitor. Assim, se uma revista em quadrinhos conseguir chegar ao seu público e mesmo assim não tiver uma boa aceitação, saberemos de fato que é porque tal revista não possuí qualidades técnicas e artísticas suficientes para sobreviver dentro de sua própria proposta editorial, e não porque foi morta prematuramente sem sequer atingir seus potenciais leitores.
Por fim, o terceiro e último pilar do Quarto Mundo refere-se à organização do coletivo. Como já explicado, foi criado um Conselho Administrativo e também Núcleos de Atuação para melhor organizar as atividades do Quarto Mundo. No entanto, o nosso coletivo continua prezando por uma organização de colaboração livre e aberta entre seus integrantes.
Então, dentro desse modelo de organização, cada quadrinistas no Quarto Mundo é como se fosse uma célula de um organismo maior, que é o próprio coletivo. Como uma célula, cada um sabe a sua função para manter esse organismo vivo. Algumas células podem ter maiores atribuições do que outras, mas não há relação de superioridade ou inferioridade entre elas. E mais do que tudo, é preciso que haja confiança e companheirismo entre os membros do Quarto Mundo para que o coletivo possa continuar atuando cada vez melhor.
Para concluir, é com base nesses três pilares apresentados que o Quarto Mundo se propõe a ajudar os quadrinistas independentes a publicarem, distribuírem, divulgarem e venderem os seus quadrinhos. Para que assim, quem sabe um dia, possamos ter de fato um mercado de quadrinhos nacional grande, forte e contínuo, contendo uma variedade de HQs que antendam a todos os tipos de leitores e seus gostos. E nesses quase dois anos de existência do Quarto Mundo já pudemos perceber que estamos no caminho certo.
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