quarta-feira, 18 de abril de 2018

Opinião - Arte de quadrinista é censurada em evento

Castanha do Pará é uma graphic novel incrível, escrita e ilustrada pelo Gidalti Moura Jr., e foi publicada de forma independente e, 2016. No ano seguinte, foi premiada no primeiro lugar da novíssima categoria "História em Quadrinhos" do Prêmio Jabuti, a mais prestigiada e importante do meio literário no Brasil.

Gidalti, cuja obra também foi indicada ao Troféu HQMIX na categoria "Edição independente de autor", mereceu demais o Jabuti. É uma baita honra, ainda mais na estreante categoria que, finalmente, premia Quadrinhos. O livro é magistralmente ilustrado com pinturas em técnica tradicional, aquarela e tudo mais. A história é envolvente e aborda um menino de rua, o Castanha, e duas desventuras pelas ruas de Belém. Uma das coisas mais interessantes do livro é que as crianças aparecem com cabeças de animais, enquanto os adultos têm cabeças humanas. Castanha, o protagonista, tem a cabeça de um urubu.

Mas esse texto aqui não é (só) para elogiar o trabalho do Gidalti. É para expressar minha indignação com uma censura que o autor sofreu em um evento. A exposição que, vejam só, era em Belém, palco da história do livro, aconteceu em um shopping da cidade. A justificativa para a censura foi que a curadoria da exposição achou que a obra era ofensiva à Polícia Militar.



Vale explicar, como pode-se ver pela imagem abaixo, que a ilustração mostra o menino Castanha fugindo de um PM, no Mercado de Ver-o-Peso, famoso cartão postal da capital paraense. Não tem, na opinião deste que vos fala, nenhum tipo de ofensa ou até mesmo crítica à PM. O que tem de tão errado, tão ofensivo, na ilustração? Tem algo nela que seja mentira e que denigre a imagem da PM?  É apenas uma cena da HQ que sintetiza a trama. Tem um policial perseguindo um menino de rua numa feira. Isso acontece. Nem todo policial é violento, ou de má índole, nem todo menino de rua é bandido. Claro, em uma única imagem é difícil de expressar tudo que a obra completa traz, mas funciona muito bem.



O próprio autor se manifestou em seu perfil no Facebook:

“Sobre censura à capa de meu livro em exposição em Belém, gostaria de declarar total repúdio aos conceitos arbitrários que classificaram a imagem como uma ofensa à polícia militar. A retirada da obra do evento é um gesto que vai contra valores fundamentais que defendo, dentre estes, a liberdade de expressão. A obra é ficcional, tem caráter lúdico e expõem situações rotineiras nas metrópoles brasileiras. Quem a compreendeu como apologia ao crime e/ou a desmoralização da polícia militar, o faz de forma leviana e sem ao menos ler o livro “Castanha do Pará”. A retirada da imagem da exposição é uma vitória parcial da ignorância, do medo e de forças antagônicas à liberdade”

Acredito que censurar a obra pela possibilidade de ser interpretada erroneamente e fora de contexto foi uma escolha péssima da curadoria. Emudeceram a voz do autor. Ao invés disso, deveriam, talvez, fazer algum tipo de suporte às obras, com legendas, informações, sinopse, etc. Não sei se isso estava disponível na exposição. Talvez conversar com o autor e propor uma alternativa, outra arte, sei lá.

Colocar uma faixa preta em cima de uma obra de arte é pior do que tirá-la da exposição. É pior do que pedir pro artista fornecer outra arte. O fato de haver uma faixa preta cobrindo uma obra é mais do que censura, é uma mensagem. É um jeito de tornar conhecida a atitude da censura, expor a todos que vêem que houve a censura. Como a fizeram é uma coisa lamentável. Não só para o artista e sua obra, como também para todo mundo que poderia apreciar o seu trabalho e querer conhecer mais, adquirir o livro, pegar um autógrafo, prestigiar o quadrinho brasileiro, e mais especificamente, o nordestino, que tem autores e obras incríveis.

Ver um tipo de censura a uma obra dessas dá um gosto amargo na boca. Estamos vivenciando uma época estranha onde manifestações artísticas são mal e porcamente interpretadas e tiradas de contexto para sustentar discursos ridículos. Revoltas e xingamentos caem sobre artistas, obras, museus e até os patrocinadores. Sinceramente, em um país onde nosso analfabetismo funcional é ainda tão absurdamente alto, é evidente o analfabetismo artístico, imagético, poético. Não é fácil apontar "culpados", nem é esse meu objetivo aqui. Mas não dá pra negar que o ensino em geral nunca priorizou a arte ou a possibilidade e expandir pensamentos, ideias, conceitos, valores através de uma visão mais esclarecida dela. Falta muita arte na vida das pessoas, mas mais ainda, falta conhecimento, informação, opinião formada de verdade em vez de preconceitos e memes.

Espero que esse tipo de coisa não aconteça mais, e se acontecer, que nossos colegas artistas, leitores, editores, jornalistas, pesquisadores, etc, não deixem barato. Esse tipo de coisa não pode acontecer. Não podemos deixar que voltemos Às práticas de uma época sombria, violenta e sem liberdades.

Para adquirir Castanha do Pará, acesse esse link (Ugra Press)

Você pode ler mais sobre o ocorrido:
Vitralizando, que deu a notícia.
Ramon Vitral conversou com o autor e a curadoria do shopping.
Tiago Regero, d'O Globo, entrevistou Gidalti e a curadoria da exposição.
O Grito

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