sábado, 12 de fevereiro de 2022

Sobre minha saída da Pandora Escola de Arte

Texto originalmente publicado na Newsletter Quebra-Cabeça (assine!) 

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Nada dura para sempre, a não ser que o seu "pra sempre" seja maleável como a percepção do tempo desassociada de ponteiros e marcadores digitais. Diria o poeta "que seja eterno enquanto dure" e isso é lindo, e quando é real, significa que independente de finais, o durante foi construído com dedicação e carinho. Também tem o clássico "o que importa é a jornada, não o destino", e também gosto dessa, mesmo se pensar que o fim sempre é o fim. Por fim, o fim também tem essa característica de morte, todo término é uma pequena (ou grande) morte de uma coisa que, espera-se, tenha sido especial. Esse conceito da psicologia também foi usado na HQ Terapia, veja só, e faz muito sentido. O fim nunca é o fim, até ser o fim definitivo, e esse teria que ser o fim de tudo, tudo mesmo, do ar que respira, da luz do olhar, da continuidade da existência física, e mesmo esse ponto final não pode existir, porque algo continua existindo: memória, legado, obras, influências. Vai até que se chegue num ponto onde não se remete mais ao que ficou de alguém, mas olha, até isso é inverdade: se fica algum tipo de presença, eventualmente ela se mescla a outras coisas e continua em frente.


É, eu sei que esse parágrafo todo tem uma interpretação possível um pouco sombria, fala-se de fim, de término, de morte, mas nada disso aconteceu de forma tão intensa ou definitiva. O que não quer dizer que não houve um fim, mas foi desses que não terminam em corte brusco perpétuo (como disse, isso é até meio impossível). É só mudança. E mudança, geralmente, é bom (eu não gosto de mudanças grandes ou bruscas, mas no final a gente acaba entendendo e fluindo com isso).

Bom, todo esse preâmbulo para falar sobre minha saída da Pandora Escola de Arte. 



Eu sou dramático, gosto de escrever coisas poéticas, melancólicas e que possam instigar qualquer reflexão, qualquer uma que seja, e aí a mensagem pode acabar com esse caráter mais tenso e denso, mais do que precisava, hehe. Mas não resisti. Quando comecei a pensar sobre o assunto, me vieram à mente essas formas de pensar em fins e saiu o texto. Agora que acabou o drama (será que algum dia ele acaba?), vamos falar das coisas.

Hoje, primeiro de fevereiro de 2022, é o primeiro dia em que eu oficialmente não sou mais professor da Pandora Escola de Artes. A Pandora, que fica em Campinas, onde eu moro há metade da minha vida, é uma escola muito bacana que tem uma longa história de formação de artistas na região. Fundada pelo Ricardo e pelo Amilcar, oferece cursos em diversas áreas das artes e artes aplicadas e participa da vida cultural da cidade e região ativamente. 

Conheci a Pandora antes de ser escola, quando ainda era "só" uma comic shop, cheia de HQs diferentes, camisetas e colecionáveis, quando ouvi na rádio, no ônibus indo pra escola em 1998, que ia inaugurar. Entendi errado o endereço e foi uma dificuldade encontrar o lugar certo, mas finalmente conheci a loja em algum momento depois de uma aula de desenho em Campinas.

Uns anos depois, vim morar em Campinas e passei a frequentar semanalmente a Pandora pra comprar meus quadrinhos. Já era uma escola, também. Meu primeiro trabalho de verdade com quadrinhos tinha como parceiro um dos professores da escola na época, o Bruno Bull. Eu ia lá levar páginas para ele continuar o projeto. Depois, já mais inserido no mercado de ilustração, conheci o Ricardo pela lista de email de ilustradores da época, a Ilustrasite, e a partir da ideia de criar eventos regionais para ilustradores, eu, ele e a Aline Bottcher organizamos o Sandubão Ilustrado, que rolou em 2006 ou 2007. Contatos feitos, não demorou para que eu fosse convidado pelo Ricks a dar aulas na Pandora.

Pra mim, foi uma honra. E já fazia meus quadrinhos há anos, tinha começado a publicar em antologias (Front) e a conhecer o mundo da HQ independente e autoral. Estudava quadrinhos como a arte incrível que são e encarava o olho torto acadêmico sobre essa linguagem na faculdade. Ser convidado pra dar aulas na Pandora era um tipo de validação, afinal era a escola mais importante desse tipo na cidade. Claro que topei. Comecei a dar aulas de Desenho Artístico, Ilustração e, claro, Quadrinhos em 2007. 

Nesse tempo, evoluí absurdamente como professor, artista e autor. Não tem como não evoluir se você está realmente dedicado ao que faz, buscando melhorar em todos os aspectos. Pra mim, dar aula é uma coisa muito especial e desenvolvi, ao longo desses anos, uma relação muito bacana com meus alunos. Não é só ensinar fundamentos de desenho, técnicas, truques. A minha própria vivência como autor e ilustrador atuante torna essa experiência maior, porque sempre levei pra aula essa vivência. Dos eventos, das publicações e todo o processo criativo delas, as exposições, tudo sempre fez parte da experiência expandida da aula. Meu estilo de aula mistura o que tem que ser visto do programa do curso com reflexões diversas sobre tudo.

Os conteúdos se misturam a visão de mundo, analogias e metáforas, filosofadas e piadinhas. E isso, eu sei, era importante e valioso para muitos alunos, porque a gente pode trabalhar não só habilidades técnicas e artísticas, mas também o interior do artista, com acolhimento, respeito e seriedade. Eu não tenho formação em psicologia, claro, mas acabei me tornando o "professor terapeuta filósofo" da escola, e com isso vários alunos eram direcionados para minhas aulas. A experiência foi muito especial para mim. Saber que eu pude ser relevante não só para ajudar as pessoas a serem melhores artistas e profissionais, mas também a se entenderem, respeitar o próprio lance, compreender melhor o mundo maior que a arte propicia. Não tem preço.

E nesses 14 anos, ajudei a formar uma série de artistas. Eu nem consigo contar, tenho medo de esquecer de alguém, mas vale dizer que tem muita gente boa produzindo quadrinhos, ilustração animação, tatuagem, design, que foram meus alunos. Na última CCXP presencial (2019), contei uns 8 autor@s no Artista Alley que tinham sido meus alunos. Que orgulho, bicho. Fora os alunos que visitaram o evento dedicando um tempo enorme aos autores e seus trabalhos (pra mim é assim: gosta de quadrinhos, estuda quadrinhos, tem que conhecer quadrinho brasileiro!). 

Aí, veio a pandemia e mexeu em muita coisa. A Pandora teve que fechar as portas por um tempo, e esse tempo foi muito mais longo do que todo mundo esperava (muito obrigado, governo, seus lixos). As aulas passaram a ser online. Começamos esses atendimentos pelo Slack, mas era só texto e imagem, não tinha vídeo nem voz. Chegou um momento em que decidi dar as aulas pelo Meet, pra poder ver e ouvir meus alunos e também compartilhar a tela e dar aula numa lousa em tmepo real. Foi ótimo, apesar de não ser a mesma coisa que a aula na sala de aula, mas me ofereceu uumas possibilidades maravilhosas em termos de didática, porque eu podia usar os softwares e suas camadas e efeitos. Tirar o melhor proveito possível do que temos à mão. Sai a lousa de vidro com marcadores e eventuais impressões em laser de referência, entra o photoshop, o clip studio, os links, camadas e sobreposições, etc. Investi no meu set up (que não era só pra escola, claro, era pra todo meu trabalho): cadeira, microfone, webcam, SSD, ring light, tablet nova. Tudo pra subir o nível do que eu poderia oferecer nas aulas, no canal e no meu trabalho offline.

A gente aguentou o tranco. Aí, no meio de 2020, com todas as dificuldades já regentes, vem a bomba: a Pandora precisou entregar a casa onde era sediada, a casa antiga de vó, super gostosa, que ficava a 2 quadras da minha casa, porque o lugar foi vendido pra uma construtora. Que caos. Eu não participei do movimento de desmontar tudo. Outro dia passei lá na frente e já não tem mais casa, só detrito. Foi triste. Ficamos naquela casa desde 2009. Mas, como todo fim pode levar a algo novo e muito bom, a Pandora encontrou nova sede numa casa super moderna e bem localizada. Só era muito longe da minha casa. 

Quando as aulas presenciais voltaram, no começo de 2021, eu decidi não voltar ao presencial. Foi uma decisão minha por causa da falta de vacina e a insegurança que a pandemia coloca na gente. Vai saber até quando a tranquilidade dura. E durou pouco, a escola fechou de novo, levou meses pra reabrir, e eu não voltei de novo. Nesse tempo todo, estava esperando estar imunizado com a segunda dose da vacina, antes disso não voltaria. Quando tomei a segunda dose era quase novembro. E novembro logo vira dezembro, o ano acaba e as aulas param no recesso, então decidi não voltar até 2021. Tudo de acordo com a escola e os alunos, muitos preferiam ficar online mesmo. Mas era cada vez menos alunos nas aulas.

No final de 2021, depois de muito, mas muito pensar no assunto, chegou ao fim minha parceria com a Pandora. Tomar essas decisões não é fácil pra mim. Eu tenho a tendência de continuar como está, torcendo e colaborando pra que as coisas melhorem, mas nem sempre as coisas mudam. Eu já aprendi há tempos com relacionamentos e emprego que pras coisas mudarem, é preciso agir, e a ação tem que vir dos dois lados. Nem sempre dá pra fazer, porque as coisas são como elas são. Talvez em algum momento isso signifique que é melhor não continuar juntos, e acho que foi isso que aconteceu. Durante a pandemia eu pude me recolher em mim, pensar muito mais no que eu quero e como eu quero fazer as coisas. Novas possibilidades apareceram (mentorias, aulas particulares, freelas e projetos de HQ). Refleti muito sobre todas as minhas relações durante esse tempo, e só consegui fazer isso porque estive isolado em casa por muitos meses. E me fez bem. Uma dessas reflexões foi justamente se eu queria mesmo continuar como professor da Pandora. 

E eu percebi que, como as coisas eram antes da pandemia, não estava 100% do meu agrado, e percebi que não era só eu, de forma egoísta, mas uma percepção honesta do que poderia acontecer, mudar, evoluir. Mas estávamos conversando, haviam planos e ideias o tempo todo. A pandemia colocou tudo em stand by. E aí depois de tanta mudança, a reflexão passou a ser, já que o que existia não existiria mais (mudou a casa, mudou a equipe, mudou o local, mudei eu), será que eu quero continuar como professor da Pandora nesse novo modelo?

A conclusão foi até mais fácil do que eu previa, tentando ficar isento de emoções (a amizade, a lealdade e o respeito por todos sempre ficou presente nas minhas reflexões sobre isso, falo mais das emoções minhas, síndrome do impostor, medo de fracasso, de ser interpretado mal). Minhas conclusões foram as seguintes:

A Pandora, que antes ficava do lado de casa, agora está mais longe. Pra chegar lá e dar as aulas, preciso ir de carro. Só que o carro é usado pela Monica pra ela ir dar aula, num lugar mais longe ainda e num horário fixo todo dia da semana. Pra eu ficar com o caro, teria que levá-la até sua escola e voltar e depois ir buscar, o que interfere no horário das minhas aulas. Exige que organizemos o cronograma de almoço e tal. Se eu for de ônibus, leva muito tempo e fico à mercê dos horários. Se for de Uber, sai caro e eu teria que arcar com esse custo. A pé, não rola. Então esse problema logístico já atrapalhava tudo. Tudo bem, eu dou aula um dia da semana, mas se eu quisesse abrir mais turmas? Ou, como eu queria, mudar os horários e dias das aulas?

Com a pandemia, a escola perdeu muitos alunos. A procura por curso online é baixíssima na escola, o que significa que se eu tive poucos novos alunos. Com a saída de alguns deles, minhas turmas ficaram pequenas. Menos alunos significa também menos dindim, e o tempo dedicado às aulas vale muito a pena se tenho salas cheias, mas nem tanto se tenho um ou dois alunos (vira praticamente uma mentoria ou aula particular, sendo pago como aula normal). 

E eu mesmo fui ficando desanimado do formato virtual, de estar sempre na mesma sala com o mesmo PC, mas respeitando minhas decisões sobre a pandemia, era isso ou voltar ao mundo exterior, e eu não queria voltar a não ser que estivesse seguro. Eu já vinha há anos sentindo que não gostava mais tanto de dar as aulas mais básicas, do começo do curso, e essas são as aulas que a gente mais dá, porque sempre tem mais alunos no começo do que no final do curso. Eu queria dar aulas avançadas, de projetos de quadrinhos, narrativa, roteiro e criação de personagens, ilustração avançada... E era mais raro ter essas aulas. Com a abertura das minhas mentorias fora da Pandora, comecei a desenvolver projetos super bacanas e ver minhas vivências e experiências serem mais úteis em aulas mais focadas com alunos mais avançados.

Também percebi que, de todos os alunos que tinha no segundo semestre, pelo menos metade deles poderiam concluir o curso e seus projetos até dezembro, o que faria o começo de janeiro ser mais "vazio". Coloque isso no ciclo de deslocamento até lá, menos alunos, menos dindim e não ver uma perspectiva de melhora nessas questões, pelo menos a médio prazo (afinal, ainda estamos na pandemia e a procura por cursos não aumentou o suficiente, os cursos novos e mudanças de programas dos cursos existentes não vão sair tão cedo)... Me pareceu que era um fim mesmo, ou pelo menos, o momento propício para tanto.

Em cima de tudo isso, também pensei muito sobre como meu trabalho floresceu durante a pandemia (quem diria, eu achei que podia ir à falência) com projetos bem legais de ilustração, mentorias, vídeos para o canal, commissions, o projeto de Pieces - Parte de Mim, o projeto de Terapia vol.2, as HQs que produzi sendo pago, os contatos se desenvolvendo com a cena independente internacional... E pensei que, poxa, eu dediquei minha vida toda a ser um profissional e viver do que eu amo. E eu sempre fiz isso, mas também sempre sendo professor. Sempre lidei com tudo ao mesmo tempo, e sempre deu certo, mas se tinha um momento que eu poderia me dar a chance de tentar dar o próximo salto em minha carreira, esse momento estava chegando e continuar na Pandora, do jeito que as coisas estavam ou estariam, não estaria nos planos. E eu devia isso a mim mesmo, essa chance de saltar e investir em mim.

Conversei muito com a Mo, muito na terapia, refleti muito mesmo, e decidi que, se tinha um momento certo para concluir minha jornada com a Pandora, era na transição de 20 pra 21. Concluir o ano amarrando as pontas com os alunos que estavam concluindo, de forma online ainda, e assim fizemos, durante janeiro. Os alunos que estavam ainda no meio do curso foram transferidos para ouros professores, a galera nova, jovem e cheia de energia, como eu era em 2007 (alguns até foram meus alunos!), que vai com certeza fazer um ótimo trabalho. 

A Pandora como eu vivenciei não existe mais. A nova Pandora é promissora e desejo tudo de melhor para todos eles, mas eu não me encaixo muito bem. Saí amigavelmente, conversei muito com o pessoal lá, Erika, Flavinha, Amilcar e Ricardo e eles entenderam. Claro que todo fim é um novo começo, mas fim é ruim, né? Impõe mudança, recalibrar as coisas, lidar com a ausência de algo que sempre esteve lá. Meu respeito e gratidão são imensos e eternos, afinal, eles me deram a oportunidade de ser professor, ensinar as coisas que mais amo e crescer com isso. A confiança que sempre tiveram em mim, na minha didática, estilo, propostas e empenho é muito importante, validação que ajuda a solidificar as estruturas internas. 

Saí da Pandora como professor dos cursos regulares, mas continuo parceiro da escola para desenvolver possibilidades pro futuro. Cursos avançados, pontuais podem vir. Aulas de Ilustração Avançada podem se retomadas e eu adoraria dar algumas aulas desse curso. E obviamente, continuo amigo de todo mundo e quero estar presente nos eventos, nas confraternizações e exposições. Assim como já rolou com outros colegas que também saíram da escola em momentos que julgaram ser corretos e hoje estão surfando suas próprias ondas e voltam de vez em quando pra confraternizar. 

É um momento muito especial pra mim, de evolução pessoal, de concentrar minha energia mais em mim mesmo e no que eu quero pra minha carreira. É um movimento importante de voar sozinho, mesmo que eu já soubesse voar e tivesse voado bem longe. É crescer, sair de casa, encarar o mundo. E vai ar certo. 2022 é promissor. Estou cheio de ideias, energia e medo. Não sei bem oque vai acontecer, e isso me incomoda um tanto, mas se eu não tentar, nada acontece. E pra tentar, eu preciso de mais foco em mim.

E é isso.

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