terça-feira, 11 de outubro de 2022

Frequência, Ferrugem, Confiança, Cachorrinhos e Desenhos (Newsletter)

Hoje é meu aniversário! Pra comemorar, trago para vocês um dos textos mais importantes que escrevi esse ano. 

Este texto foi publicado originalmente na Newsletter Quebra-Cabeça, edição 42, em 9/9/2022.

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      Frequência, Ferrugem, Confiança, Cachorrinhos e Desenhos      

(Obs.: Eu ainda não bati o martelo quanto ao nome dessa teoria, mas essa me parece ser a que mais funciona. Tem alguma sugestão?)

Eu voltei a desenhar! 

Então, como eu já vinha falado aqui e ali, com toda a correria dos últimos meses (vida cartas anteriores), por incrível que pareça o que eu manos fiz foi desenhar. Claro, eu desenhei a HQ do Projeto Didático, fiz alguns freelas e rabisquei uma ou outra coisa pra mim. Mas não foi suficiente. E isso tem a ver com a Teoria que eu quero apresentar hoje. É mais uma daquelas minhas teorias, tão usada em sala de aula e que servem pra orientar não só os alunos mas também a mim mesmo. É engraçado, por exemplo, quando eu dava essas dicas para os alunos nas aulas da Pandora e eu mesmo não conseguia aplicar pra mim. 

A coisa é que esse desenho meio idealizado que eu coloco aqui como meta é o desenho que se faz num misto de trabalho e lazer, sem grandes pretensões e que serve como uma forma de aquecimento pata o desenho "trabalho", "oficial". É o hábito de desenhar constantemente, independente da técnica, do tema, do objetivo. É ter tempo e espaço e cabeça para sentar com calma. Só desenhar. 

De certa forma, o desenho permeia a vida do artista profissional e é difícil entender onde acaba o trabalho e começa o lazer ou o estudo. Ultimamente, eu só andava desenhando oque tinha a ver com trabalho. Era menos tempo e cabeça pra dedicar ao desenho, então ganhava sempre o desenho pros projetos e clientes. E esse desenho pode não ser satisfatório num âmbito... emocional?

Enfim, nas últimas semanas, passado o grande rolê da viagem da Monica, eu me vi com mais tempo e espaço (e, eventualmente, cabeça) e fui colocando o desenho de volta nessa rotina. Começar é o mais complicado (e tem a ver com outra teoria, a Teoria do Trem - um dia eu falo dela), porque envolve romper uma inércia. Quando se está acostumado a não desenhar, parece mais fácil usar os tempos que aparecem para resolver coisas mais direto ao ponto, práticas e mundanas. Coisas que dão um resultado meio previsível e satisfatório, justamente por serem fáceis de resolver. E o desenho, nesse ponto, como está meio de lado há um tempo, parece uma montanha mais complicada de subir - e com menor potencial de satisfação. 


Cavaleiro da Lua com umas experiências, um dos primeiros desenhos dessa retomada

Olha, não vou mentir, pegar as coisas pra desenhar e ficar um tempo lá e não sair nada é bem frustrante. Quando digo "não sair nada" é porque mesmo que você desenhe algo e aquilo seja tecnicamente bem resolvido, ainda não satisfaz. Então, até sai o desenho, mas não resolve o que se estava buscando. Isso tem uma ligação, pra mim, com uma nostalgia, uma memória afetiva do desenho tendo aquele papel, aquela sensação, aquela relação. E quando aquilo não acontece...

E isso acontece, eu acredito, justamente por falta de frequência. 



Pessoas

Qualquer coisa que sabe fazer precisa de prática. Mesmo sabendo fazer, tendo domínio consciente de todas as partes daquela coisa, ainda assim, é preciso se manter perto dela, fazendo e dando chance de coisas interessantes acontecerem (como, por exemplo, melhorar naquilo). 

O exemplo que usei hoje na terapia pra explicar isso é uma amálgama de duas vertentes: exercícios físicos, pra representar a parte motora, física de desenhar; e falar um idioma, pra representar a linguagem, aparte mental. Desenho é os dois ao mesmo tempo. E quando existe uma rotina, um costume e uma dedicação a essas coisas, constante, você chega num ponto de fluência e controle, entra num fluxo, num estado mental, onde a coisa acontece sem grandes problemas e, estando conectado dessa forma, o resultado tende a ser satisfatório. Tudo flui. 

Agora, se existe o hábito de se exercitar todo dia e por algum motivo você para, voltar àquilo é um pouco complicado. Quanto mais tempo se passa longe daquela conexão, pior: mis difícil vai ser retomar, porque por mais que exista uma fluência e uma memória, que não se perdem, existe uma ferrugem. É como andar de bicicleta, baita clichê mas funciona. 


O Bátema

E na hora de retomar é preciso ter noção de que provavelmente a coisa não vai fluir da mesma forma. É preciso se reacostumar, pegar o jeito, se adaptar talvez. E nesse processo, se você não tem tempo/espaço/cabeça para ficar lá o suficiente pra desenferrujar, o resultado vai acabar decepcionando - se é que alguma coisa vai sair.

E aí, a frustração com o processo que não rolou como você lembrava e desejava vai tirar o ânimo de continuar engajado naquilo e até de voltar em outro momento. Justamente porque sempre tem alguma outra coisa que precisa ser feita e pode ser mais satisfatória... Mesmo que seja, aiaiai, ficar doomscrolling no seu celular.


O Miarã, antes das cores

Então, minha Teoria da Frequência afirma que, para estar fluente e conectado com o que você ama fazer, é preciso fazer isso constantemente, nem que seja preciso abrir mão de outras coisas. Ficar longe dessa atividade que traz tanta sensação boa e resultados bacanas vai atrapalhar a relação que temos com essa atividade.

No caso de coisas que envolvem criatividade, isso é especialmente complicado, porque pode mexer com o emocional de um jeito mais profundo ainda, afetando sua autoconfiança em áreas além do seu trabalho. E isso acontece comigo. 

Ficar muito tempo sem desenhar me faz questionar o meu desenho, minha técnica, minhas ideias, meus estilos. Questiono a relevância do meu trabalho, das minhas aulas, das teorias, do meu papel na cena. Existe uma força interior, atrelada à criatividade e produção, que está intimamente ligada à minha sensação de valor (maldito capitalismo!) e que me energiza para não só fazer mais do que eu já faço, mas ir além.

Pois. Nas últimas semanas eu venho recolocando o desenho de forma mais frequente na minha vida. Em meio a cuidar das coisas da vida real, eu retomei o hábito de desenhar por desenhar. Ajuda muito o fato de que eu ainda estou entre unidades no Projeto Didático e portanto, sem prazos e metas pra cumprir. Estou desenhando o que dá vontade de desenhar, testando uns materiais, explorando estilizações, confiando no que eu já sei que sei fazer (é menos frustrante). Estou postando esses desenhos no Instagram e Twitter.


Demolidor feito durante uma live no Instagram

E tem sido muito bom. Eu literalmente me sinto BEM quando eu desenho, especialmente quando entro nesse fluxo, essa coisa nostálgica. Eu lembro do porque eu amo fazer isso. Eu me sinto mais forte, mais válido, mais engajado. Sinto vontade de criar coisas novas e quanto mais imerso eu fico nessa experiência, mais eu tenho confiança no que faço e queria criar. E isso é essencial para fazer as coisas, independente de onde elas vão chegar (ou SE chegarão, tanto faz). 


Wolverine no caderno

No meio dessa retomada do desenho, eu recebi pelo Instagram uma coisa muito bacana: um desenho meu, provavelmente de 1992,quandoeu tinha 8 anos. Era a capa de um gibi do Ronaldo, meu personagem. Nela, o Ronaldo, um cachorrinho caramelo, brinca de avião de controle remoto com seu amigo, o Pato Raider, e derruba o avião dele com um "míssil". Olha ela aí, que graça:



A capa tem design editorial, tem narrativa, tem pretensão, tem energia. E achei tão legal revisitar essa capa que decidi redesenhá-la. E fiz isso numa live no meu canal do Youtube, que durou umas 3 horas e foi acompanhada por uma galera (inclusive meus pais, que me viram desenhar a Turma do Ronaldo mil vezes, e o próprio Ronaldo, meu vizinho da época e grande amigo, que inspirou o personagem). A última live que eu tinha feito pra desenhar tinha sido em 31 de janeiro! Dá uma olhada como ficou:



Eu me diverti demais fazendo isso! Revisitar essa infância e a relação com o desenho desde lá atrás me fez muito bem. E continuei. Por causa de um probleminha com os bookplates do Terapia Vol.2, me vi sem poder continuar o envio dos livros, então me voltei aos desenhos originais para alguns apoiadores. E, para garantir que eu estaria afiado o suficiente (lembre, muito tempo sem desenhar, especialmente no tradicional, me faz perder um tanto da precisão e da confiança no traço), fui fazendo desenhos de aquecimento, esses que mencionei acima. Entrei numa onde muito boa de arte-final e estou bem satisfeito com os resultados (não 100%, mas quase). 


Moça ensolarada no caderno

Pretendo continuar com as lives no Youtube e no Instagram, pra desenhar e conversar com as pessoas. Trocar ideias, responder perguntas, fazer desafios. Eu preciso disso, preciso me manter conectado com o desenho, com a criatividade, com a cena, com os amigos, com o que me faz bem. Isso me fortalece. E essa frequência de conexão me permite fluir melhor por estas vertentes da minha vida e, mais que tudo, experienciar o desenho da forma que eu sempre gostei de fazer.


Obi-Wan no papel azul (E uma Batgirl)

Apesar desse textão todo, a Teoria da Frequência é simples. A complexidade vem da forma como a gente se relaciona com aquela coisa que amamos fazer. Cada um tem um jeito de lidar com isso, mas espero que essa reflexão te faça pensar também nas suas relações com as suas coisas, e te inspire também a dar um jeito de se manter conectado a ela, ou, se for o caso, reconectar de vez - e nunca mais parar.

Que bom estar de volta.

PS.: Se você quiser assistir a live onde eu recriei a capa da Turma do Ronaldo, é só clicar na imagem:



PS. 2: Fiz outra live eses dias pra arte-finalizar uma das artes do Catarse, um Beakman. Pra assistir, clica aí embaixo:

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